Monteiro Lobato e o racismo em livros infantis de sua época
Cilza Bignotto

Nos últimos dez anos, trechos de livros infantis de Monteiro Lobato vêm sendo apontados ou denunciados como racistas, devido a passagens relacionadas, principalmente, à personagem Tia Nastácia. É o caso, por exemplo, da expressão “negra de estimação”, usada pelo narrador de Reinações de Narizinho para apresentar Tia Nastácia aos leitores. A expressão – de fato chocante para os leitores de hoje – já aparecia no álbum A menina do narizinho arrebitado, publicado em 1920, que iniciou a saga do Sítio do Picapau Amarelo. As denúncias de racismo, realizadas em processos judiciais e em artigos, palestras, postagens em redes sociais, levaram a uma série de debates públicos, que continuam ocorrendo em várias esferas da Educação, do Direito, dos Estudos Literários, dentre outras. Os debates têm sido pontuados por questões como: Lobato poderia ter representado personagens negras de outra maneira na época em que produziu seus livros? Será mesmo que o contexto em que um escritor vive tem tanta importância no desenvolvimento de sua obra?  Apresentamos, a seguir, elementos para ajudar você a pensar sobre essas questões e tentar respondê-las. Vamos começar pelos textos para crianças que circulavam quando Monteiro Lobato escreveu e publicou seus livros infantis, a partir de A menina do narizinho arrebitado.

A cor da invisibilidade

Como era a representação de personagens negras nos livros infantis que circulavam nas livrarias, escolas, bibliotecas públicas e particulares das primeiras décadas do século XX? 

É triste, mas, em boa parte dos livros infantis escritos por autores brasileiros naqueles anos, simplesmente não havia personagens negras. Era como se as pessoas negras, que já constituíam a maior parcela da população nacional, não existissem – ou fossem invisíveis. É o que se observa, por exemplo, no Primeiro livro de leitura 1, que dá início, em 1903, a uma série produzida pelos educadores Arnaldo de Oliveira Barreto e Romão Puiggari, ambos muito renomados. A série de quatro livros, que teve numerosas edições ao longo das décadas seguintes e foi adotada em escolas públicas, sobretudo paulistas, era inspirada no livro Cuore (1886), do escritor italiano Edmondo De Amicis. Assim como na obra italiana, os livros de Barreto e Puiggari narram o cotidiano de um protagonista, o menino Paulo, em capítulos que tematizam lições aprendidas pelo menino em episódios ocorridos na escola e em sua casa. 

Não há personagens negras no Primeiro livro de leitura, mas há nele uma cena bastante significativa para o exame da representação da população negra em livros infantis da Primeira República. Um capítulo é dedicado a Luíza, irmã caçula do protagonista, que “Parece uma alemãzinha pelo doirado dos seus cabelos, que são crespos e sedosos” e pelos olhos “azuis como um pedaço de céu”. Luíza tem várias bonecas:

Umas são grandes; outras pequenas. Quasi todas, porém, são brancas, coradas e louras como a mãezinha!

Há duas bonecas que servem de criadas. Essas são pretinhas, bem pretinhas, de lábios muito vermelhos.

O ideal de infância plasmado na narrativa do livro e nas bonecas de Luíza é o da criança loira, que parece europeia. Não há crianças negras na classe de Paulo. Sobre os criados da casa, provavelmente negros, nada se sabe, além do fato de que existem. O mesmo modelo ideal de criança se repete em outros livros de grande circulação naquele período, como os de João Kopke, Mariano de Oliveira, João Pinto e Silva, em meio a diversos outros educadores. De modo geral, crianças negras são pouco ou nada representadas nos livros didáticos que sustentavam o projeto republicano de educação para o país. 

Os livros para crianças não eram para todas as crianças.

As poucas tentativas de incluir crianças negras como leitoras ou protagonistas de livros infantis foram realizadas de maneira sintomaticamente ambígua. É o que se nota no início de Páginas infantis 2, do professor Mariano de Oliveira, livro de leitura preparatória “dedicado à infância brasileira” e “adotado em todas as escolas”:

Os versos que funcionam como epígrafe da obra convidam “crianças loiras, claras, morenas” a abrir as Páginas infantis. Na ilustração que emoldura o poema, há um menino negro entre as 13 crianças brancas. Seu perfil, no canto superior da página, faz crer que o adjetivo “morenas” se refere também a crianças negras, e que haverá outras no interior do livro. 

Não há.

A cor da escravidão

Quando negros, adultos ou crianças, aparecem como personagens em livros do final do século XIX e início do XX, geralmente as histórias transcorrem no período da escravidão. É o que se observa, por exemplo, em Contos Pátrios (1904) de Coelho Neto e Olavo Bilac. No conto “Mãe Maria”, o protagonista, já adulto, relembra a ama, uma velha senhora africana escravizada, que cuidara dele desde o nascimento. Mãe Maria amava tanto “Nhonhô Amâncio” que, certa vez, depois de ser apedrejada pelo menino, mentiu ao pai dele para protegê-lo: disse que os ferimentos haviam sido causados por uma queda. Quando o menino lhe pede perdão, a face de Mãe Maria lhe parece “tão bela, tão clara, tão iluminada quanto a daqueles anjos do Senhor” que povoavam suas “histórias de roça”. O afeto de uma criança branca tem o poder de elevar a figura da mulher negra, de “clarear” sua pele. O destino de Mãe Maria, entretanto, é ser vendida, com outros escravos, e morrer como indigente.

BILAC, Olavo; NETO, Coelho. Contos pátrios (para as crianças). Ilustrações de Vasco Lima. 44a ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1958. Acervo de Cilza Bignotto.

Página do conto “Mãe Maria”, de Olavo Bilac, integrante do livro Contos pátrios.
Ilustração de Vasco Lima. Acervo de Cilza Bignotto.

Em outro conto do livro, “A borboleta negra”, a “pureza” moral de crianças brancas é responsável por salvar “uma criaturinha de pele preta”, abandonada no mato. Leonor e Henrique – “que só tem nove anos, mas é um homem!” – levam o bebê para casa. Ao entregá-lo à mãe, Leonor exclama: “que mãe malvada, que preta malvada a que abandonou assim esta filhinha! Não é verdade que mamãe vai ser também mãe dela?”3.

A pele negra, se não é “clareada” por sacrifícios realizados para ajudar pessoas brancas, é sempre relacionada à maldade, ao embrutecimento, quando não à corrupção e ao vício. Esta é a clave que pauta as histórias infantis do período, mesmo quando escritas por abolicionistas notórios, como Coelho Neto e Olavo Bilac – o qual, nas primeiras décadas do século XX, defendeu os direitos de negros numerosas vezes em suas crônicas de jornal. Também são compostas nessa linha as histórias infantis de Manoel Bomfim, médico que se posicionava contra a ideia de inferioridade da raça negra, então dominante nos meios científicos e intelectuais. Seu livro Primeiras saudades: leitura para o primeiro ano do curso médio das escolas primárias (1920)4 retrata algumas personagens negras em circunstâncias excepcionais: Henrique Dias, que lutou ao lado dos portugueses contra os holandeses, no século XVII, e um “preto robusto”, anônimo vendedor de bananas que salva um homem branco do afogamento. Em Através do Brasil 5, escrito com Olavo Bilac, os protagonistas são brancos. Quando precisam atravessar o sertão baiano, conhecem Juvêncio, um adolescente “simpático, moreno, entre caboclo e mulato”. O “tipo” auxilia os heróis a enfrentarem a rudeza dos campos brasileiros.

Finalmente, as figuras de negros ou negras libertos são usadas em algumas obras infantis para justificar a reunião de diferentes contos populares. Quem lê Serões da mãe preta: contos populares para crianças (1897)6, de Juvenal Tavares, encontra os contos populares, mas nenhuma história protagonizada pela referida mãe. Em Histórias do Pai João, de Renato Sêneca Fleury, a personagem Pai João só aparece para os leitores, e muito rapidamente, no quarto conto dos cinco integrantes do livro. Figuras negras revelam-se como meros eixos articuladores de  Contos da Mãe Preta: estórias do folclore adaptadas à leitura das crianças (1932), de Oswaldo Orico, que inaugurou a Biblioteca Infantil de O Tico-Tico, e no posterior Histórias de Pai João: estórias do folclore adaptadas à leitura de crianças, do mesmo autor.

FLEURY, Renato Sêneca. Histórias do Pai João (do folclore africano). 2a. ed. São Paulo: Melhoramentos, s/d. (Biblioteca Infantil n. 67). Acervo de Cilza Bignotto.

A cor da maldição

Nos livros para crianças da Primeira República, são reconhecidas como dignas e virtuosas as personagens negras que ou sacrificam a vida por alguém branco ou são mestiças de pele clara. A pele negra quase sempre é relacionada não apenas a brutalidade e a vícios, mas também a maldições. Um exemplo dessa terrível associação é o conto “A princesa Negrina”, integrante de Contos para crianças (1906), de Chrysanthème – pseudônimo da escritora Maria Cecília Bandeira de Melo Vasconcelos. Nele, uma rainha é amaldiçoada por desejar muito uma filha, mesmo que “escura como a noite”. O pedido é atendido: a princesa nasce negra e terá de passar pelas mais terríveis provas para se tornar branca e conhecer a “real felicidade”. O livro foi traduzido para o inglês e publicado na Inglaterra em 1929. Outro exemplo é “Pérola da manhã”, um dos “contos do folclore africano” reunidos no livro Flor encarnada, da Biblioteca Infantil Melhoramentos, organizada pelo professor Arnaldo de Oliveira Barreto. Pérola da manhã é uma “linda moça” negra que deseja encontrar um rio mágico cujas águas tornam brancas as pessoas que nele se banham.

BARRETO, Arnaldo. Flor encarnada.10a. ed. São Paulo: Melhoramentos, s/d. (Biblioteca Infantil n. 18)

Pérola da Manhã se banha no rio mágico que branqueia pessoas negras.

A pele escura também está ligada a outras formas de maldição. No livro Lendas brasileiras, de Carmem Dolores – pseudônimo de Emília Bandeira de Melo, mãe de Chrysanthème – o conto “A mula sem cabeça” narra como uma “rapariga atrevida, espécie de mestiça altaneira” foi transformada em assombração diabólica por tentar seduzir um padre. Já a “preta Isidora”, do conto “Os sapatinhos de pão”, é mulher escravizada que fica “como idiota”, “bebendo às vezes cachaça”, até ser encontrada morta. Tudo porque fizera os tais sapatos de pão para calçar o filho morto. A alma do menino não consegue entrar no céu com os sapatos e volta para pedir à mãe que os tire de seus pés, pois ele precisa ficar descalço como os anjos. O “lindo menino loiro” da Sinhá, morto no mesmo dia, entra no céu sem sapatos – mas vestido com as mais ricas vestes. Vivo ou morto, o filho de uma escrava não podia usar sapatos. Ainda que fosse católica fervorosa, uma mulher escrava atraía para si e para o filho a maldição, por desejar sapatos para o “moleque”.

DOLORES, Carmem. Lendas brasileiras. Ilustrações de Julião Machado. Rio de Janeiro: Laemmert & Cia., 1908.
Acervo de Cilza Bignotto

A ilustração de Julião Machado, uma jovem mestiça é retratada com corpo de serpente – ela tenta seduzir um padre. Como castigo, ela viria a se tornar a amaldiçoada Mula-sem-cabeça.
Acervo de Cilza Bignotto.

Ser negro era ser amaldiçoado, conforme uma série de ficções que circulavam oralmente e por escrito, entre elas a narrativa bíblica da maldição lançada por Noé a seu filho Cam, que teria recaído sobre o neto Canaã, interpretada por teólogos do passado como explicação para o surgimento das populações africanas.

Reescrevendo os atributos da cor negra

O racismo evidente nos livros infantis que circularam na Primeira República pode ser explicado por meio de algumas hipóteses. Em primeiro lugar, era efeito do racismo que estruturava (e ainda estrutura) a sociedade brasileira. Em segundo, era produto do racismo que permeava o sistema de ensino do período. Pesquisas recentes têm apontado o racismo vigente nas políticas de educação formal, que abrangiam da separação de crianças brancas e negras em diferentes turnos escolares a eventuais normas, como a exigência de sapatos para entrar nos recintos escolares, as quais impediam o ingresso de crianças pobres, como o eram, em sua maioria, as negras e pardas. Era possível entrar no céu sem sapatos, mas não em salas de aula.

Como a produção de livros infantis estava fortemente atrelada ao consumo escolar, é possível que autores, editores, ilustradores e demais agentes literários produzissem obras em consonância com as diretrizes, explícitas ou implícitas, das instituições de ensino. Tal contexto explicaria a ausência de personagens negras e os estereótipos raciais negativos nas obras infantis de autores como Coelho Neto, Olavo Bilac, Manoel Bonfim, os quais, em textos para adultos, defendiam os direitos das pessoas negras, a igualdade racial, o fim do racismo. 

É preciso levar em consideração, ainda, as obras infantis que serviam de modelo para os escritores brasileiros. Presciliana Duarte de Almeida afirmava imitar os livros do alemão Cônego Schmidt; Olavo Bilac e Manoel Bomfim se inspiraram no romance francês Le Tour de la France par deux enfants (1877), de Augustine Fouillée, para escrever Através do Brasil; Arnaldo de Oliveira Barreto e Romão Puiggari seguiam o modelo do italiano Amicis. Estes e outros autores europeus forneceram os moldes pelos quais os brasileiros produziam literatura infantil. As regras do jogo só começaram a mudar com as obras de Monteiro Lobato.

Inovações no campo da literatura infantil, porém, não costumam acontecer de forma abrupta. Editores comumente publicam modelos já conhecidos e consagrados, que pais e professores reconhecerão como bons e adequados para crianças. Por isso, mesmo grandes inovadores, como Hans Christian Andersen ou Lewis Carroll, mantiveram elementos dos modelos de obras infantis do passado em suas criações. Esse tipo de cuidado garantia que suas obras fossem reconhecidas como infantis, para começo de conversa. Caso as inovações formais ou de conteúdo fossem muito radicais, as obras daqueles escritores corriam o risco de não serem aceitas por mediadores de leitura e pelas próprias crianças.

Como apresentar aos leitores Tia Nastácia, uma personagem negra que não apenas era muito visível, mas atuaria como protagonista? A situação era inédita em 1920. Podemos compreender por que, naquelas circunstâncias, Tia Nastácia foi introduzida como “negra de estimação”. Podemos, igualmente, imaginar por que o narrador insiste em se referir a ela como “boa negra”. Afinal, negros não costumavam ser naturalmente bons em histórias infantis; somente sacrifícios extremos por alguém branco os tornava moralmente dignos de apreciação. 

Monteiro Lobato parece seguir as convenções de seu tempo, mas, na realidade, ele as transformou em grande medida.

O escritor mudou muitos dos atributos até então associados à pele negra. Tia Nastácia tem voz, sabedoria, e numerosas virtudes. Não porque sua pele seja clara, devido à mestiçagem; pelo contrário, seus traços negros são sempre realçados. Não porque alguma fada tenha lhe dado sabedoria, ou algum rio mágico a tenha branqueado. Não porque alguma criança loira a veja como “um anjo do Senhor”, depois de torturá-la. Ela é negra e é boa. A repetição exaustiva das duas qualidades pelo narrador indica o quanto era estranho encontrá-las reunidas em uma personagem de literatura infantil.

Outra forma utilizada por Monteiro Lobato para transformar o modo como personagens negras eram retratadas foi a crítica irreverente às demais obras infantis que então circulavam. É o que se observa, por exemplo, na cena de “O Circo de Escavalinhos” em que Pedrinho explica a Narizinho que Tia Nastácia talvez não vá ao espetáculo das crianças porque na plateia há muitas princesas: “Está com vergonha, coitada, por ser preta.”. Quem não teria vergonha, sabendo que a própria pele estava associada a maldições diversas? Qualquer conhecedor de contos de fadas de origem europeia – e Tia Nastácia os conhecia bem – saberia que negros só entravam em histórias protagonizadas por princesas para encarnar o mal ou atrair maldições. Narizinho responde que Tia Nastácia não deve “ser boba” por ter vergonha da própria pele. A menina apresenta Dona Benta e Tia Nastácia aos príncipes e princesas da seguinte maneira:

— Respeitável público, tenho a honra de apresentar vovó, Dona Benta de Oliveira, sobrinha do famoso Cônego Agapito Encerrabodes de Oliveira, que já morreu. Também apresento a Princesa Anastácia. Não reparem por ser preta. É preta só por fora, e não de nascença. Foi uma fada que um dia a pretejou, condenando-a a ficar assim até que encontre um certo anel na barriga de um certo peixe. Então o encanto se quebrará e ela virará uma linda princesa loura.

A explicação de Narizinho alude a obras literárias e a outros discursos sociais nos quais o valor de mulheres brancas era determinado pela origem e posição social da família, especialmente de seus integrantes masculinos. A importância solene que a figura do cônego poderia projetar sobre Dona Benta, porém, é transformada em piada hilariante pelo nome ridículo do cônego, sua fama nula e o fato de que ele nem vivo estava. Dona Benta, já sabiam os leitores, valia por si mesma. Quanto à Tia Nastácia, o discurso para justificar sua presença é o mesmo dos contos de fadas para crianças, como o de Chrysanthème, que associavam a cor da pele negra a maldições impingidas a princesas originalmente brancas. Mesmo princesas africanas, como Pérola Negra, do conto de Arnaldo Barreto, desejavam ardentemente o branqueamento. As palavras de Narizinho aludem, ainda, a ficções nada literárias que ainda hoje circulam, tais como a de que negros “bons” teriam “alma branca”. Tais ficções, conhecidas das crianças das primeiras décadas do século XX, revelam-se mentirosas e ridículas, por meio da fala de Narizinho. A falsidade e o absurdo das explicações exigidas para que o “respeitável público” acolha Tia Nastácia contrasta com o sentimento de inferioridade da personagem muito verdadeiro para grande parte da população negra, na qual tais ficções eram incutidas.

A cena é exemplar da complexidade com que as obras infantis de Monteiro Lobato tematizam problemas adultos os mais variados, incluindo as tensões raciais brasileiras. A fala de Narizinho, se desvela o “faz de conta” de discursos racistas, ancorados em fantasias, simultaneamente revela o poder das fantasias na estruturação da realidade cultural. Trocando em miúdos, “Uma coisa existe quando a gente acredita nela”, como explica o saci a Pedrinho, no livro O saci. O racismo é sustentado por fantasias; nem por isso deixa de ser real.

Monteiro Lobato não “apaga” de seus livros infantis nem os negros, nem os discursos racistas que então circulavam, alguns dos quais, infelizmente, permanecem na sociedade brasileira. Ofensas de teor racial, porém, são majoritariamente proferidas pela boneca Emília, criada por Tia Nastácia. O recurso permite que falas racistas sejam desautorizadas no momento em que são expressas, por meio de vários mecanismos narrativos. A boneca não é humana, o que torna desumanos, por conseguinte, seus discursos. As ofensas geralmente surgem quando Tia Nastácia contraria os interesses mesquinhos, quando não maldosos, de Emília. A injustiça e o absurdo das falas preconceituosas da boneca se tornam ainda mais evidentes, em certas cenas, pelas ações de Tia Nastácia. 

A passagem do tempo, porém, transformou os  livros de Lobato – muito mais, talvez, do que seu autor poderia prever. Estão desaparecidas, das bibliotecas e das memórias, praticamente todas as obras infantis que circulavam na mesma época em que A menina do narizinho arrebitado era lida e, posteriormente, Reinações de Narizinho tomava seu lugar. Um dos efeitos provocados pelo fato de apenas a obra lobatiana ter atravessado um século e continuar a ser conhecida é que o diálogo, por vezes crítico e cáustico, estabelecido pelos textos lobatianos com outras obras infantis não é mais percebido pelos leitores. Para crianças e jovens adultos de hoje, que convivem com modelos muito diferentes de livros, filmes e outras produções para o público infantil, pode parecer, por exemplo, que Monteiro Lobato inventou a horrível história de que ter a pele negra pode ser uma maldição. 

 Leitores contemporâneos podem também estranhar a insistência do narrador em se referir a Tia Nastácia como “boa negra” por desconhecerem o quão forte era a associação entre pele negra e maldade, e o quão raras eram personagens negras em histórias infantis. 

Na mesma linha, é difícil, para leitores de agora, ter ideia da dimensão da novidade que foi a criação da boneca Emília. As bonecas retratadas em obras infantis no tempo do escritor eram loiras, feitas de louça e vestidas de seda. O fato de a boneca de Narizinho ter sido criada por uma mulher negra já era um acontecimento singular. A valorização dos saberes e fazeres populares, em especial os afrobrasileiros, começa para valer nas obras infantis com Monteiro Lobato. 

A trajetória de Emília, por sua vez, é bastante simbólica. Bonecas têm aparência humana mas são coisas que pertencem a pessoas; podem ser entendidas metaforicamente, portanto, como escravas. Crianças mordem bonecas, cortam seus cabelos, atiram-nas ao chão, gritam com elas, dão-lhes ordens. O corpo de Emília é rasgado o tempo todo, e novamente costurado por Tia Nastácia. Ao longo da saga do Sítio do Picapau Amarelo, a boneca vai ganhando autonomia, independência e humanidade; nas últimas histórias escritas por Monteiro Lobato, ela já deixou de ser coisa e passou a ser gente. Ora, ser gente significa ser frágil. Em uma das últimas histórias criadas por Monteiro Lobato, “A reinação atômica” (1947), Emília descobre que tem câncer. Ela havia viajado ao Atol de Bikini para ver “os estragos da bomba atômica”. Ao saber que está doente,

Emília perdeu a compostura, fez cara de choro — ela que nunca havia chorado! E correu à cozinha em busca de tia Nastácia, à qual contou tudo, entre soluços, querendo saber se não havia remédio.
A negra riu-se, riu-se, e gozou de ver a invencível Emília abatida, chorosa, largada em seu colo, a fungar, no horror de ficar careca.
Mas teve dó dela e consolou-a:
— Não tenha medo, bobinha. Eu dou um arranjo nisso. Tio Barnabé tem um remédio para cabelo tão bom, tão bom, que até faz nascer cabeleira em ovo de galinha. Arranjo com ele uma dose, e deixo essa cabecinha com uma cabeleira que nem a de Sansão.
Emília fungou, fungou e afinal se consolou. 

Minutos depois, Emília está brincando com Pedrinho. A relação entre Emília e tia Nastácia é das mais complexas da literatura. No excerto reproduzido, é Tia Nastácia quem Emília procura quando finalmente se descobre frágil e chora. No colo da mulher que a criou, ela desabafa e pede ajuda. Tia Nastácia “goza” de ver Emília finalmente conhecer a dor; mas, como alguém que sabe bem o que é dor, especialmente a de um estigma, consola a boneca, como só ela poderia consolar. Vale notar, ainda, que saberes negros e populares entram em cena para combater a doença provocada por saberes brancos e científicos.

É também de 1947 “A violeta orgulhosa”, provavelmente o mais antirracista conto infantil de Monteiro Lobato. Para provar a uma violeta branca que ela não era superior às violetas roxas, às quais humilhava, Emília conta com a ajuda do Visconde — que explica, cientificamente, o quão despropositada era a ideia de “superioridade ariana”.

Não é possível julgar qualquer aspecto da obra infantil de Monteiro Lobato por apenas uma cena, por apenas um volume. Há que se ler todos, a fim de acompanhar como as personagens evoluem e como temas complexos, tais como as tensões raciais brasileiras, são desenvolvidos, por meio de sofisticados recursos narrativos. O que se pode afirmar, como comentário geral ao tratamento que Lobato dá ao tema do racismo em seus livros infantis, é que ele começou o longo processo da reescrita dos atributos de personagens negras em nossa literatura infantil. Esse processo ainda está em curso e tem gerado obras para crianças que, enfim, apresentam personagens negras como protagonistas não apenas livres de estigmas, como orgulhosas de suas origens étnicas.

  1. BARRETO, Arnaldo de Oliveira; PUIGGARI, Romão. Primeiro livro de leitura. 18a. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1915. Disponível em: <http://lemad.fflch.usp.br/sites/lemad.fflch.usp.br/files/2018-06/primeiro_livro_de_leitura_barreto_1915.pdf> Acesso em: 22 dez. 2020.
  2. OLIVEIRA, Mariano de. Páginas infantis: leitura preparatória. 48a ed. São Paulo: Melhoramentos, 1935. Disponível em: <http://blij.bn.gov.br/blij/handle/20.500.12156.7/19> Acesso em: 22 dez. 2020.
  3. BILAC, Olavo; NETO, Coelho. Contos pátrios (para as crianças). Ilustrações de Vasco Lima. 44a ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1958. p.76.
  4. BOMFIM, M. Primeiras saudades: leitura para o 1º ano do curso médio das escolas primárias. 1a. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1920. Disponível em: <http://blij.bn.gov.br/blij/handle/20.500.12156.7/14> Acesso em: 22. dez. 2020.
  5. BILAC, O.; BOMFIM, M. Através do Brazil: (narrativa) livro de leitura para o curso médio das escolas primárias. 10a. ed. revista. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1923. Disponível em: <https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/5051>
  6. TAVARES, J. Serões da mãe preta: contos populares para crianças. Pará: Tipografia de Alfredo Silva & Cia, 1897. Disponível em: <http://www.fcp.pa.gov.br/obrasraras/publicacao/seroes-da-mae-preta/>