Patrícia Tavares Raffaini

Alguns dias antes do Natal de 1920, Monteiro Lobato publicou sua primeira obra escrita especialmente para o público infanto juvenil:  A menina do Narizinho Arrebitado. O livro com capa dura, em grande formato, havia sido impresso em quatro cores, na cidade de São Paulo. Nas suas 43 páginas, apresentava desenhos de um conhecido ilustrador: Voltolino.  

A capa devia chamar a atenção do público, com suas letras em cores vibrantes e a figura inusitada de um príncipe-peixe sobre a mão de uma menina com laço no cabelo. Nas margens, viam-se inúmeros animaizinhos, como borboletas, caramujos, sapos, besouros, toda uma pequena fauna que, no traço de Voltolino, parecia amigável e engraçada.

Capa de A Menina do Narizinho Arrebitado,
de Monteiro Lobato, ilustrações de Voltolino. 1920. 
Acervo Magno Silveira.
Clique na imagem para ver a versão completa digitalizada,
no acervo da BBM

Livros ilustrados em grande formato eram comercializados por editoras estabelecidas no Brasil, que traduziam produções francesas ou alemãs desde as últimas décadas do séc. XIX. Algumas dessas obras eram traduções de contos de fadas ligados à cultura popular tradicional europeia; outras, como os livros de Benjamin Rabier, publicados pela Irmãos Garnier, tinham características do gênero que mais tarde seria chamado de Histórias em Quadrinhos. A obra de Lobato, no entanto, apresentava uma novidade. A história era vivida por uma protagonista bem brasileira: “uma menina morena, de olhos pretos como duas jaboticabas”, a despeito da capa, que a retratava como loira. Morando em um sítio com duas mulheres já idosas – sua avó e tia Anastácia –  ela vive aventuras na companhia de sua boneca de pano, a “excelentíssima senhora dona Emília”. O autor também inovava ao descrever uma natureza muito próxima à da criança brasileira: é à sombra de um velho ingazeiro que a protagonista alimenta piquiras, guarus, lambaris e parapitingas, todos habitantes do Reino das Águas Claras. As peripécias de Lúcia se desenrolam nesse ambiente em que aranhas tecelãs costuram deslumbrantes vestidos, aerogrilos fazem as vezes de aviões e caramujos são médicos consagrados. 

A narrativa se completa com as imagens atraentes de Voltolino, pseudônimo de João Paulo Lemmo Lemmi, caricaturista muito conhecido do público por ocasião da publicação de Narizinho. O ilustrador havia começado sua carreira em 1905, publicando seus desenhos em jornais humorísticos da imprensa paulista em língua italiana. Colaborou também, continuamente,  em periódicos como O Pirralho, O Parafuso e A Cigarra, além da versão vespertina de O Estado de S. Paulo, o  Estadinho, de 1919 a 1921. O público ainda podia reconhecer seus traços em diversas peças publicitárias como as do guaraná espumante Zanotta-Lacta, dos chocolates Lacta e dos cigarros Sudan Extra. 1

Criação de Voltolino para anúncio do
Guaraná Espumante, publicado em
O Estado de S. Paulo, 16/01/1921.
Acervo Iconographia.

A estratégia de lançar livros e álbuns para crianças na primeira quinzena de dezembro era bastante utilizada tanto no Brasil quanto nos países europeus. Editores aproveitavam, assim, o costume de presentear as crianças por ocasião do Natal e da Festa de Reis. O álbum ilustrado A menina no Narizinho Arrebitado era, para os padrões da época, um excelente presente, escrito por um autor consagrado e ilustrado por  um dos mais conhecidos caricaturistas de S. Paulo. O formato grande e colorido valorizava ainda mais a publicação.

No momento do lançamento, Lobato já deveria estar pensando em como continuar sua narrativa, e também em alcançar outros segmentos de público – afinal, dois meses depois do lançamento do álbum ilustrado, em fevereiro de 1921, apareceria o volume Narizinho Arrebitado. Com uma materialidade muito diferente da do álbum ilustrado, trazia a primeira história de Narizinho e continuava a aventura acrescentando-lhe duas outras partes. Publicado em papel de qualidade mais precária, também ilustrado por Voltolino, mas sem as cores, tinha um formato menor do que o Álbum.

Capa Narizinho Arrebitado,
de Monteiro Lobato,
ilustrações de Voltolino, 1921.
Acervo Magno Silveira.

Enquanto a obra ilustrada custava 3$500,  a nova edição custava 2$500, e na capa já revelava a intenção do autor/editor: “segundo livro de leitura para o uso das escolas primárias”. Lobato, em correspondência para o amigo Rangel, nos informa que a tiragem era audaciosa: 50.500 exemplares! Contava ainda que, para poder vender a avalanche literária, havia investido em publicidade:

“Gastei 4 contos num anúncio de página inteira num jornal daqui. Faz de conta que é Gelol. ‘Doi? Gelol’ (…) Nunca imaginei que 50.500 fossem tanta coisa! Encheu-me os vazios das nossas salas da rua Boa Vista. Tive que alugar uma vizinha, que também se encheu até o forro. (…) O problema agora é vender, fazer com que o público absorva a torrente de narizes.”2

O interessante é que, no anúncio, Lobato se utiliza da opinião dos professores e diretores de escolas, assim como da crítica publicada nos jornais e também das mensagens recebidas das crianças. Nos trechos selecionados, lemos, por exemplo, o comentário de Eduardinho Costa: “até sonhei com tanta coisa engraçada…Aquele Doutor Caramujo que amolava toda a gente com as tais pílulas do Serra-Pau. Mas antes não lesse porque agora quero saber o resto da história e não posso. Porque é que disse no fim que era sonho? Eu queria que não fosse sonho…” Outras crianças também perguntam pela continuação, e a leitora Bellinha Novaes dá uma ideia: “porque não faz sair todo o mez um pedaço como o ‘Tico-Tico’?”

Na contra capa da edição escolar de Narizinho, havia uma listagem com obras de Lobato “para gente grande” e dois livros “em preparação para crianças”, O Marques de Rabicó e O Pequeno Bandeirante. A publicidade provavelmente instigava os pequenos leitores que, terminando a leitura, ficavam ansiosos para saber se os livros listados eram a continuação da história. Outros comentários elogiam a presença de Tom Mix, o herói do cinema, que surge para salvar Narizinho e Emília de bandidos. A visita de personagens provenientes do cinema, como Tom Mix e o Gato Félix, ou mesmo de outras obras literárias, como as princesas dos contos de fadas, Peter Pan e Aladin, será uma tônica nos volumes publicados por toda a década de 1920. Em 1931, foram reunidos no grande volume Reinações de Narizinho.

Na edição de Narizinho Arrebitado, de 1921, a boneca Emília passa a falar, mas não ainda por obra das pílulas falantes do Doutor Caramujo. Também Pedrinho aparece pela primeira vez, de forma ainda muito diferente da que se tornaria definitiva com a edição organizada por Lobato posteriormente. Nessa edição, Pedrinho é também um órfão que passa a morar com D. Benta, e, na cena em que Narizinho e Pedrinho se conhecem, a convivência não é tão pacífica como vemos nas versões posteriores. A obra de 182 páginas foi organizada em pequenos capítulos de três ou quatro páginas, o que provavelmente facilitaria seu uso em escolas, podendo ser lida aos poucos em sala de aula.

No volume seguinte, Marquês de Rabicó, publicado em 1922, é a vez de Visconde de Sabugosa surgir, como pai do leitãozinho. Vem para pedir a mão de Emília, a Condessa de ***, para seu filho o Marquês de Rabicó. Mas nada sai como o esperado. Ao final, quando se pensa que o leitão acabara indo parar na ceia de Ano Bom, Lobato escreve uma nota em página avulsa, informando os leitores que Rabicó havia conseguido se safar, mas que ninguém sabia disso ainda, nem Pedrinho, nem Narizinho, nem as velhas. Em tom de segredo, conta diretamente aos leitores que isso seria somente revelado na próxima obra, Caçada da Onça. Dessa forma, Lobato se dirige aos leitores como escritor, mas também como editor, ao divulgar o próximo livro. À maneira dos folhetins, ele deixa o público ansioso por saber o que aconteceria.

O Marquês de Rabicó.
Companhia Editora Nacional, 1929.
Ilustrações de Voltolino.
Acervo Magno Silveira.

Em 1928, já morando em Nova Iorque, onde ele desempenharia, até 1931, o papel de adido comercial junto ao consulado brasileiro, Lobato escreve quatro novos livros: O Noivado de Narizinho, Aventuras do Príncipe, O Gato Félix e Cara de Coruja. Neles, continua utilizando o recurso de fazer personagens de fora da obra, vindos do cinema ou de contos de fadas, interagirem com os personagens do Sítio. Personagens de desenhos animados como o Gato Félix,  protagonistas da literatura inglesa como Peter Pan e até mesmo brinquedos famosos na América do Norte, como Raggedy Ann, convivem com as crianças do Sítio do Picapau Amarelo.

Guilherme, Martha, Edgard e Ruth,
filhos de Monteiro Lobato e Purezinha
em frente ao conjunto onde residiam
em Nova Iorque, c. 1928.
Acervo Iconographia.

O noivado de Narizinho.
Companhia Editora Nacional, 1928.
Ilustrações de Jean Gabriel Villin. Acervo Magno Silveira.

 Aventuras do Príncipe.
Companhia Editora Nacional, 1928.
Ilustrações de Nino Borges. Acervo Magno Silveira.

O Gato Félix.
Companhia Editora Nacional, 1928.
Ilustrações de Nino Borges. Acervo Magno Silveira.

A Cara de Coruja.
Companhia Editora Nacional, 1928.
Ilustrações de Nino Borges. Acervo Magno Silveira.

No ano seguinte, saem mais duas histórias: O irmão de Pinocchio Circo de Escavalinho, no qual, pela primeira vez, leitores de Lobato visitam o Sítio de Dona Benta. Nessa obra aparecem dez crianças que, em sua maioria, eram filhas de amigos de Lobato. Foi o caso de Alariquinho, filho de Alarico Silveira e Maria da Graça, filha de Sebastião Sampaio. Todas elas haviam sido convidadas, bem como as personagens dos contos de fadas, para a apresentação do Circo organizado por Pedrinho e Narizinho.

Circo de Escavalinho.
Companhia Editora Nacional, 1929.
Ilustrações de Belmonte.

Irmão de Pinocchio.
Companhia Editora Nacional, 1929.
Ilustrações de Jean Gabriel Villin. Acervo Magno Silveira.

O famoso pó de pirlimpimpim surge na narrativa de Lobato pela primeira vez na obra A pena de papagaio, de 1930. Por meio desse recurso, o autor podia colocar seus personagens em toda e qualquer situação, abrindo uma porta para a fantasia sem limites. Assim, visitam o País das Fábulas, onde se encontram com La Fontaine e de onde trazem para o Sítio o Burro Falante, que mais tarde receberá o nome de Conselheiro.

A Penna de Papagaio.
Companhia Editora Nacional, 1930.
Ilustrações de Jean Gabriel Villin.
Acervo Magno Silveira.

De volta ao Brasil, em 1931, escreve o O pó de pirlimpimpim, uma aventura pensada para ser a continuação da obra anterior.  No mesmo ano, Monteiro Lobato reúne todos os dez livros que haviam sido publicados separadamente e, modificando as narrativas originais, constrói Reinações de Narizinho. A obra, que se tornaria o primeiro volume das obras completas infantis, obteve um sucesso imenso, chegando a ter traduções em espanhol e italiano. Em 1944, a editora argentina Americalee, publica Las travessuras de Naricita, e no ano seguinte a Eclettica Edizioni, publica Nasino.

Edição argentina de Reinações de Narizinho.
Clique na imagem para ler a versão completa digitalizada, acervo BBM.

Versão italiana de Reinações de Narizinho, Nasino, 1945.
Acervo Magno Silveira.

Reinações de Narizinho recebeu de 1931 a 1945 doze edições, tendo sido vendidos mais de cem mil exemplares. O próprio autor, em entrevista à rádio Record, em 1948, diria que essa era a sua obra preferida, “a querida do meu coração”.

Meninas escutam o rádio,
década de 1940.
Acervo Iconographia.

Audio:
Trecho de entrevista de Monteiro Lobato
02 de julho de 1948.
Acervo Marcos Resende.
Ouça a entrevista completa

Em 1982, por ocasião da comemoração do centenário de nascimento de Monteiro Lobato, a Metal Leve, empresa fundada e dirigida por José Mindlin, publicou uma edição fac-similar de A Menina do Narizinho Arrebitado. O álbum recebeu também um posfácio de Francisco de Assis Barbosa, intitulado Monteiro Lobato e o direito de sonhar, que traça uma breve biografia do escritorA publicação fac-símile, com tiragem de 3.000 exemplares, possibilitou que a obra, muito rara em sua edição original, pudesse ser redescoberta por pesquisadores e um público mais amplo. 

  1. BELLUZO, Ana Maria de Moraes. Voltolino e as raízes do modernismo. São Paulo: Ed. Marco Zero, 1992.
  2. Barca de Gleyre. P. 230