FIGURAS PARA FORMAR BRASILEIRINHOS

Magno Silveira

Monteiro Lobato estreou na literatura em 1918 com o livro de contos Urupês, destinado ao público adulto. já havia publicado, naquele mesmo ano O Sacy, resultado de um inquérito, um apanhado de depoimentos sobre o duende brasileiro, que colhera junto aos leitores do jornal Estadinho, edição vespertina do grupo de O Estado de S. Paulo.

Capa da 1a. edição de Urupês, ilustrada por Wasth Rodigues, 1918.
Acervo Magno Silveira.

Quanto à literatura infantil, Lobato, então pai de quatro crianças pequenas, ressentia-se da qualidade dos livros destinados aos brasileirinhos. É o que demonstra sua carta de 8 de setembro de 1916, destinada ao amigo Godofredo Rangel:

(…)

“Que é que nossas crianças podem ler? (…) É de tal pobreza e tão besta a nossa literatura infantil, que nada acho para a iniciação de meus filhos. Mais tarde só poderei dar-lhes o Coração de Amicis – um livro tendente a formar italianinhos…”

Quatro anos depois, em 1920, Lobato marcará definitivamente a literatura infantil brasileira com A menina do narizinho arrebitado. Àquela altura, o prestígio que Monteiro Lobato havia alcançado com as sucessivas edições de Urupês e com a grande repercussão do personagem Jeca Tatu provavelmente colaborou para a aceitação do “livro de figuras” infantil. Porém, Lobato não contou apenas com seu prestígio nos meios intelectuais: anunciou o lançamento nos jornais, estratégia a que recorreria inúmeras vezes, anos a fio.

Assim, às vésperas do Natal de 1920, o jornal Correio Paulistano, em anúncio ilustrado, dá conta do lançamento de A menina do narizinho arrebitado: “o melhor presente de Natal para crianças: – Livro de figuras no formato grande, com sessenta estampas a quatro cores, desenhadas por Voltolino.” O livro se destacou também pelo artista que assinava as “figuras” – o conhecidíssimo Voltolino, o mais notável ilustrador paulistano à época.

Monteiro Lobato nos traços de Voltolino, 1917.

Décadas mais tarde, em 1943, Monteiro Lobato exporia os motivos que o levaram a dar importância para as capas e figuras: “arranjamos desenhistas para substituir as monótonas ‘capas tipográficas’ pelas capas desenhadas – moda que pegou e ainda perdura. Os balcões das livrarias encheram-se de livros com capas berrantes, vivamente coloridas, em contraste com a monotonia das eternas capas amarelas das brochuras francesas.”

Na sequência abaixo, além de Voltolino, apresento os primeiros ilustradores de Narizinho no período de 1920 a 1947 (este, o ano em que Monteiro Lobato publicou a sua obra completa e definitiva). São eles os pioneiros que construíram a iconografia do Sítio do Picapau Amarelo e ajudaram – muito – Monteiro Lobato na sua missão de formar brasileirinhos.

VOLTOLINO

Voltolino (1884-1926), assinatura de Lemmo Lemmi, ilustrou o primeiro livro infantil de Monteiro Lobato, A Menina do Narizinho Arrebitado, em 1920. É considerado um dos grandes intérpretes do microcosmo infantil do escritor, com graciosas soluções de desenho e estilização – traços com nítida inspiração art nouveau. 

A afiada antena de caricaturista, que tão bem detectava o desfile de tipos da São Paulo das primeiras décadas do século xx, está por trás da humanização dos impagáveis “bichorocos”, atuantes desde o primeiro livro infantil de Lobato, pois habitam a realidade de Narizinho e da boneca Emília tanto o besourão de óculos e bengalão como o peixe de casaco vermelho e cartola – o empertigado Príncipe Escamado, todos “vestidos” com o humor e a elegância das linhas decididas do ilustrador        Voltolino foi o grande caricaturista da República Velha. Começou a trabalhar na imprensa paulista de língua italiana, mas logo passou a colaborar com as publicações satíricas ilustradas. A política e os políticos, a nova configuração social de um país que começava a se industrializar e as desigualdades afloradas com a emergência do proletariado urbano nunca saíam ilesos de seu nanquim ferino. Suas críticas ecoavam pelos cafés, bondes e esquinas das grandes cidades. A linguagem nova de suas caricaturas também empolgava os modernistas. Não à toa, trabalhou por sete anos (1911-1917) na revista O Pirralho, dirigida pelo escritor Oswald de Andrade.

Ilustração de Voltolino para a abertura de A menina do narizinho arrebitado, 1920. Acervo Magno Silveira.

A primeira ilustração em detalhes de Emília. Voltolino, 1920.
Acervo Magno Silveira.

Narizinho espirrou pela primeira vez nos traços de Voltolino, 1920.
Acervo Magno Silveira.

NINO

O ilustrador paulistano Sebastião de Camargo Borges, o Nino (1897 – ?), estudou desenho com o professor Benjamin Constant Mello e, ao desenvolver a carreira, foi muito influenciado pelos desenhos de Walt Disney. Nunca deixou, entretanto, que essa filiação artística comprometesse sua originalidade. Com traço vivo e nervoso, ilustrou três livros de Lobato: Aventuras do Príncipe, A Cara de Coruja e O Gato Félix. Sua “feiosa” Emília, como aparece em Aventuras do Príncipe, encabeça uma galeria de personagens com perfis irregulares.        Com 23 anos, Nino publicava a primeira charge na revista A Cigarra. Nos anos 1940, ganhou notoriedade nas páginas da Gazeta Esportiva, produzindo uma grande coleção de caricaturas em bico de pena de ases do futebol paulista, as chamadas portraits-charges. As torcidas dos grandes times gritavam gol para os tipos cômicos e emblemáticos que Nino criava, como o mosqueteiro, o vovô, o santo e o periquito, representando, respectivamente, Corinthians, Ipiranga, São Paulo e Palmeiras.

Emília desenhada por Nino em 1928 em Aventuras do Príncipe.
Acervo Magno Silveira.

Dona Benta, Doutor Caramujo, Príncipe Escamado e Narizinho por Nino, 1928. Acervo Magno Silveira.

Tia Nastácia chora por Sardinha, que não resistira a um mergulho na fritura. Nino, 1928. 
Acervo Magno Silveira.

BELMONTE

O currículo de Belmonte, o paulistano Benedito de Barros Barreto (1897-1947), abrange bem mais que as artes visuais: além de caricaturista, desenhista e pintor, foi jornalista e historiador. Lobato o tinha como “artista integral”. “Seu lápis irreverente, irônico, fino e agudo, criou para a sua terra uma época inteiramente nova”, escreveu Edgar Braga.

O grande personagem criado por Belmonte foi Juca Pato, homem síntese do paulistano das primeiras décadas do século xx. Concebido durante passagem pela Folha da Noite, Juca Pato verbalizava a crítica ao Estado Novo e a Getúlio Vargas. Extremamente popular, Juca Pato foi estampado em embalagens de cigarros e até em rótulos de água sanitária.Os trabalhos de Belmonte povoaram também revistas satíricas como D. Quixote, Careta (onde substituiu o renomado chargista J. Carlos), Fon-Fon, Cruzeiro e Revista da Semana.

Dona Benta e Tia Nastácia em trajes de passeio para se divertirem no “Circo de Escavalinhos”. 
Ilustração de Belmonte, 1928.
Acervo Magno Silveira

Emília se apresenta no circo sobre o seu cavalinho de pau (presente de Pedrinho). Nesta ilustração, podemos notar os traços limpos de Belmonte, de influência art-déco. Livro O Circo de Escavalinhos, 1929.
Acervo Magno Silveira.


JEAN GABRIEL VILLIN

O “brasileirismo” do ilustrador Jean Gabriel Villin (1906-1979) sempre impressionou Monteiro Lobato. Nascido na França e naturalizado brasileiro, Villin foi um espécie de cartógrafo lírico da geografia lobatiana, concentrado não somente na caracterização dos personagens, mas na ambientação profunda do mundo caipira –  as bananeiras, os troncos descascados das goiabeiras e os onipresentes mastros de São João.

Villin chegou ao Brasil em 1925, aos 19 anos, para trabalhar como desenhista numa fábrica de louças, em Porto Ferreira (SP). Mudou-se depois para São Paulo, onde fez carreira na publicidade. “Comecei a ilustrar alguns livros de Lobato quando ele e J.U. Campos estavam em Nova York”, escreveu Villin. Segundo ele, “Lobato possuía uma grande sensibilidade artística e, embora deixasse o ilustrador à vontade, sabia perfeitamente o que convinha para os seus livros”. Da parte dele, dizia que sua produção artística era uma modesta contribuição ao seu País de adoção. Villin logo viria a se dedicar exclusivamente à publicidade. Uma exceção foi a concepção arquitetônica e os desenhos do Marco Zero da Praça da Sé, inaugurado em 1934.

Emília e seu péssimo hábito de mostrar a língua para Tia Nastácia. Ilustração de Jean Villin de 1929 para o livro O irmão de Pinocchio. Acervo Magno Silveira.

O Burro Falante surgiu pela primeira vez nas aventuras de A pena de papagaio, de 1930. Desenho de Jean Villin. Acervo Magno Silveira.

Ilustração de Jean Villin na técnica de litografia para as guardas da primeira edição de As Reinações de Narizinho, 1931. Acervo Magno Silveira.


JURANDYR UBIRAJARA CAMPOS (J.U. CAMPOS)

J.U. Campos foi um dos introdutores da moderna arte da propaganda em São Paulo. Sua estada nos EUA coincide com a de Monteiro Lobato, que foi adido comercial do Consulado Brasileiro em Nova York. Foi nesse período, “nos Estados Unidos de Ford”, que J.U. Campos casou-se com Martha, filha de Lobato, dando ao escritor a neta Joyce. 

Após sua volta ao Brasil, em 1930, ilustrou primeiramente O Pó de Pirlimpimpim. Mais tarde, nos anos 1940, J.U. Campos debruçou-se nos personagens do Sítio, promovendo uma competente releitura da obra pioneira de Voltolino. A influência americana pode ser constatada na composição de vários desenhos, mas é evidente nas capas da série Os Doze Trabalhos de Hércules (1944), que lembram as dos pequenos gibis de western.

Tia Nastácia e Dona Benta em O pó de pirlimpimpim, primeiro livro que J.U.Campos ilustrou da obra lobatiana, 1930. Acervo Magno Silveira.

O Visconde de Sabugosa e a Emília de J.U. Campos tornaram-se muito populares a partir dos anos 1940. Ilustração para Reinações de Narizinho, 1943.
Acervo Magno Silveira.

O Visconde de Sabugosa e a Emília de J.U. Campos tornaram-se muito populares a partir dos anos 1940. Ilustração para Reinações de Narizinho, 1943.
Acervo Magno Silveira.

J.U. Campos desenhou todos os livrinhos de Os doze trabalhos de Hércules, lançados em 1944.
Acervo Magno Silveira.


ANDRÉ LE BLANC

André Le Blanc (1921-1998) ilustrou as obras completas de Monteiro Lobato, publicada em 1947, em 17 volumes, tal como o escritor havia organizado. O único título que Le Blanc não desenhou foi Os Doze Trabalhos de Hércules, que manteve as ilustrações que J.U. Campos fizera em 1944.

Os traços de Le Blanc acabaram sacramentando a “fisionomia” de cada um dos personagens do Sítio e ainda hoje servem de referência para outros desdobramentos midiáticos da obra lobatiana. Para gerações e gerações de leitores, Visconde de Sabugosa e Emília são aqueles retratados por Le Blanc.

Nascido no Haiti, Le Blanc emigrou para os Estados Unidos, onde foi educado. Nos anos 1940, foi assistente do célebre quadrinista Will Eisner, em The Spirit, e de Sy Barry, em O Fantasma. Foi aclamado por seu trabalho com Flash Gordon e por inúmeras tiras para jornais. Numa segunda temporada, já no final dos anos 50, criou personagens para os estúdios de Hanna Barbera e concebeu muitos Mandrakes. Le Blanc é internacionalmente reconhecido pelas milhares de ilustrações para uma Bíblia “épica”, editada nos anos 1960. Mestre da linguagem dos quadrinhos, Le Blanc deu aulas na Escola de Artes Visuais de Nova York.

Casado com a diplomata brasileira Elvira Telles, Le Blanc veio para o Brasil no final dos anos 1940, e foi um dos primeiros professores do Museu de Arte Moderna do Rio. Maurício de Sousa, o pai da Mônica, foi seu aluno. Le Blanc atuou ainda como repórter dos jornais Correio da Manhã e O Globo.        Além de ilustrador da obra completa de Lobato, Le Blanc é conhecido pela adaptação em quadrinhos de clássicos de nossa literatura, a popular Edição Maravilhosa, que seguia os moldes da Classics Illustrated. Na coleção brasileira há desde uma versão de Ubirajara (1952), de José Alencar, a Menino de Engenho (1955), do escritor José Lins do Rêgo. Le Blanc teve seu trabalho reconhecido pelo governo brasileiro ao ser condecorado com a medalha Cruzeiro do Sul.

ANDRÉ LE BLANC, Reinações de Narizinho, 1947.
Acervo Magno Silveira

AUGUSTUS

O barítono Augusto Mendes da Silva (1917-2008) deu gradiosidade às capas da coleção de Lobato. Pintor e desenhista comercial, sua reconhecida especialidade era a representação humana. Fez mais de mil retratos a óleo e crayon. Para as ilustrações das capas de Lobato, a base preta dos desenhos recebeu cores fortes, em combinações inusitadas, com ênfase nos enquadramentos arrojados, tal o da capa de Reinações de Narizinho, em big-close.

A série, concebida com inteira liberdade por Augusto, contemplava os desejos de Lobato, que não via a hora de unificar a linguagem das capas de sua coleção. O layout final recebia o nome de Monteiro Lobato em tipografia “script” e o ilustrador assinava a peça como AVGVSTVS, classicamente, como se em mármore de um templo romano. É de se crer que os livros funcionassem como verdadeiros cartazes nas estantes das livrarias, com capa e contracapa ligadas por um único desenho. Incluídas no repertório de várias gerações de leitores de Lobato, até hoje essas imagens pops de AVGVSTUS são cultuadas.

Nascido em Santos, Augusto viveu a maior parte da vida em São Paulo, onde conheceu Lobato, vizinho de escritório. Após o sucesso das capas para a Editora Brasiliense (“sei que as vendas aumentaram depois dos meus desenhos”), passou a receber mais encomendas. Chegou a ilustrar o Almanaque do Biotônico Fontoura. Além das artes plásticas, dedicava-se, com incontido orgulho, ao canto lírico. Gostava de citar as temporadas de Madame Butterfly e La Bohème (Puccini) e I Pagliacci (Leoncavallo), além dos recitais no Rio e em São Paulo, ao lado da esposa, a soprano Eva Espíndola.

Capa de Augustus para Reinações de Narizinho, 1947. Acervo Magno Silveira.