Gabriela Pellegrino Soares

Os livros de Monteiro Lobato (1882-1948) para crianças abriram a literatura infantil para possibilidades de elaboração artística usualmente reservadas, no país, a domínios da literatura para adultos. Na forma como no conteúdo dos textos lobatianos, percebe-se o trânsito de elementos entre dois universos demarcados segundo o público visado mas que, fundamentalmente, eram universos literários. Seguindo os passos da análise da historiadora Cilza Bignotto, no Sítio do Picapau Amarelo, desenham-se enredos com componentes simbólicos referidos ao desenvolvimento das condições físicas e anímicas da criança. Como nos contos de fadas, as crianças da obra infantil de Lobato são levadas a deixar temporariamente o amparo do lar para enfrentar, com ajuda de recursos mágicos, os desafios do mundo interior e exterior. Retornam afinal à casa, vitoriosas e amadurecidas pelas experiências vividas.

Na visão de Lobato, para leitores principiantes, era preciso que os livros fossem sedutores, que apelassem à imaginação, que fossem obras “formadoras”, ganhando o leitor “para a cultura”.  Por isso seus livros exploravam, com poesia e filosofia, crítica e humor, múltiplas dimensões da alma humana, contradições e perspectivas do universo social e desafios do conhecimento. 

À diferença do repertório literário infantil predominante no mercado brasileiro, que considerava “pobre e besta”, Lobato buscou confeccionar livros onde as crianças quisessem morar, como lembrava-se de “ter morado no Robinson e em Os filhos do capitão Grant”. Seu esforço foi reconhecido por críticos contemporâneos, como Tristão de Ataíde, que escreveu em  O Jornal, do Rio de Janeiro, em 25 de abril de 1921, a propósito de A menina do narizinho arrebitado, que por ele a criança “criará gosto pela leitura, sentirá que o livro não é apenas um instrumento de disciplina mas um campo maravilhoso para a expansão do mundo interior (…). É um livro que estimula a vida, que fecunda a imaginação, que desperta a curiosidade”.1

Monteiro Lobato refletiu sobre os desafios da educação brasileira de sua época, manifestando entusiasmo pelas propostas escolanovistas e, em particular, pela obra de Anísio Teixeira. Lobato e Teixeira conheceram-se em Nova Iorque em fins dos anos 1920, quando o escritor era adido comercial brasileiro e o educador baiano fazia especialização no Teachers College da Universidade de Columbia. Lobato escreveu-lhe em 1929,

Recebi o seu livro e estou a lê-lo com interesse e simpatia que me causam os trabalhos ‘pensados’. Que penetração, que visão segura do problema! Poucas vezes na vida tenho encontrado inteligência lúcida como a sua e tão penetrante. Se no Brasil houvesse ressonância para as idéias esse livro calaria fundo e marcaria época. Infelizmente, as coisas são o que são. Poucos lerão o seu trabalho – e menos ainda o entenderão… Mande um exemplar ao Alarico Silveira, secretário da Presidência, e outro ao Fernando de Azevedo, diretor de Instrução no Rio. A eles escreverei recomendando que leiam religiosamente o seu trabalho e tenho a certeza de que de dois pelo menos você será entendido. (…)2

Monteiro Lobato entre Edson de Carvalho (dir) e Anísio Teixeira (esq). À esquerda de Anísio Teixeira está Octales Marcondes Ferreira. Campo do Araqua, c. 1932. Acervo Iconographia.

Foi assim, por intermédio de Lobato, que Anísio Teixeira aproximou-se de Fernando de Azevedo, um dos principais articuladores do movimento em prol da renovação educacional no país, nos anos 1920 e 1930. O educador baiano foi um defensor de que a aprendizagem escolar se integrasse às experiências sociais em geral. Por intermédio da experiência, a criança perceberia o sentido das coisas, compreendendo as palavras num processo de “reconstrução imaginativa”, mais do que de repetição ou treino.

Em mais de um sentido, as narrativas de Monteiro Lobato para crianças foram ao encontro dessa preocupação, em especial aquelas publicadas na década de 1930 e na primeira metade dos anos 1940, as quais passaram a abordar conteúdos escolares ou que o escritor julgava válido difundir, nos campos da Astronomia (Viagem ao céu, 1932), da Gramática (Emília no País da Gramática, 1934), da Aritmética (Aritmética da Emília, 1935), da História (História do Mundo para Crianças, 1933), da Geografia (Geografia de Dona Benta, 1935), da Geologia (O Poço do Visconde, 1937), das ciências exatas (História das Invenções, 1935 e Serões de Dona Benta: Lições de física e astronomia, 1937), da Biologia (A reforma da natureza e O espanto das gentes, 1941), da Política (A chave do tamanho, 1942), da Literatura (Dom Quixote das crianças, 1936), das Fábulas e do Folclore (Histórias de tia Nastácia, 1937), da Mitologia grega e da Filosofia (O minotauro, 1939; Os doze trabalhos de Hércules, 1944) e mesmo da língua inglesa (Memórias da Emília, 1936). 

Viagem ao céu, de Monteiro Lobato.
Companhia Editora Nacional, 1932, 1a. edição.
Acervo Magno Silveira.

História do mundo para as crianças,
de Monteiro Lobato.
Companhia Editora Nacional, 1933, 1a. edição.
Acervo Magno Silveira.

Geografia de Dona Benta,
de Monteiro Lobato.
Companhia Editora Nacional, 1935, 1a. edição.
Acervo Magno Silveira.

Nesses livros, Lobato construiu situações de aprendizado que exemplificam práticas idealizadas por Anísio Teixeira. As personagens do Sítio entregam-se com interesse e deleite à experiência e logo à elaboração intelectual do conhecimento, da mesma forma como parecem ter feito os leitores de seus livros, segundo sugerem as cartas que endereçaram ao escritor.

  1. Tristão de Ataíde apud AZEVEDO, C. L. de, CAMARGO, M. e SACCHETTA, V. Monteiro Lobato: furacão na Botocúndia. São Paulo: SENAC São Paulo, 1997; p. 158.
  2. VIANNA, A. e FRAIZ, P. Conversa entre amigos: correspondência escolhida entre Anísio Teixeira e Monteiro Lobato. Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia; Rio de Janeiro: FGV/CPDOC, 1986, p. 31.